terça-feira, 14/05/2024

O QUE É ESTUPRO VIRTUAL?

Os crimes sexuais sempre foram um tema polêmico. Devido à gravidade com que são cometidos e as consequências suportadas pelas vítimas, esses crimes se encontram uniformizados pela norma penalista. Dentre os vários crimes de cunho sexual, um se destaca: o crime de estupro. À vista disso, nosso artigo possui o condão de analisar a tipificação desse crime e a identificação de sua existência na modalidade virtual, no contexto de violência contra a mulher.

É importante realçarmos a relevância do assunto, para que ocorra a prevenção e tipificação dos atos de violência praticados contra mulheres no meio virtual.Anteriormente à Lei 12.015/09, a definição do crime de estupro tinha como vítima apenas a mulher, que sofria conjunção carnal contra sua vontade, ou seja: o fato típico se consumava com a introdução do pênis na vagina sem o consentimento da mulher.

Atualmente, com o advento da Lei 12.015/09, o crime de atentado violento ao pudor agregou-se ao crime de estupro, passando a existir apenas um delito. Sendo assim, se um agente forçar a vítima à conjunção carnal ou à prática de ato libidinoso diverso, as duas ações são tidas como estupro.

Vejamos a definição legal do crime de estupro para melhor compreensão:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (BRASIL, 1940). O nó górdio, objeto de análise deste artigo, repousa nas condutas constantes na parte final da definição legal do crime.

O tipo penal fala em constranger alguém (que significa tolher a liberdade, implicando na obtenção forçada da conjunção carnal ou outro ato libidinoso), mediante violência ou grave ameaça (todo ato que extermina a capacidade de pensamento, escolha, vontade e/ou ação da vítima) a ter conjunção carnal (que segundo a doutrina majoritária se dá pela cópula pênis-vagina, ainda que exista uma corrente minoritária com pensamento contrário) ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (coito anal, oral, toques, masturbação, beijos lascivos, etc.).

Realizada, então, essa breve análise, conclui-se que novos tipos de violência são considerados estupro. Dessa forma, surge a possibilidade que crimes contra a dignidade sexual, no âmbito virtual, também pertençam a esse tipo penal, já que ocorre um constrangimento sexual. O estupro, como qualquer outro crime, acompanha o processo histórico e evolutivo da sociedade – e, nesse prospecto, a internet foi, sem dúvida, uma das mais importantes descobertas feitas pela humanidade. Vive-se, hoje, numa sociedade muito comunicativa, sem saber como isso é possível, quando e por onde. A dominância da informação é flagrante, embora nem todos reconheçam.

Calha obtemperar que, apesar das inegáveis qualidades dessa tecnologia – como a ampliação da comunicação entre pessoas -, o meio virtual vem sendo utilizado para a realização de inúmeras fraudes, ofensa à Dignidade Humana, danos ao sistema financeiro e até para a exploração sexual. A tecnologia é oferecida a todos e pode ser utilizada de acordo com a pretensão de cada um, sendo necessário lembrar que, assim como a formação da sociedade, o ambiente virtual também é sustentado por construções de valores e ideias patriarcais, a qual possui um contexto de violência contra mulher, enraizado na criação das famílias brasileiras e que tem a previsão de 527 mil casos de estupro ao ano no Brasil.

Conforme demanda o machismo estrutural, o espaço virtual é propício para que seja praticado um novo tipo de violência contra o gênero feminino, revestido de misoginia e vulnerabilidade.Por isso, na mesma velocidade com que a informática foi tomando espaço na sociedade, surgem também, de maneira veloz, os novos Crimes Cibernéticos. Apesar dos grandes benefícios proporcionados pela internet, boa parte dos usuários utilizam essa ferramenta e seus benefícios com o intuito de cometer crimes e fazer mal a sociedade.

Obviamente, as práticas hoje consideradas atentatórias à dignidade sexual não eram assim consideradas há alguns séculos. Em alguns períodos históricos, não eram sequer criminalizadas. E isso faz parte do processo evolutivo do Direito, da humanidade e da sociedade em geral.Tamanha é a facilidade com que a internet é utilizada, assim como a rapidez da transmissão de dados, que criminosos utilizam dessa plataforma como ferramenta facilitadora e catalizadora para o cometimento de crimes, por acreditarem que terão uma chance maior de lograrem êxito em sua empreitada e maquiarem a autoria delitiva, como também, por acreditarem nas dificuldades de rastreamento de sua localização.

Lado outro, diversamente do que acreditam, a tecnologia facilita a investigação do crime, já que tudo fica registrado nos endereços de IP dos computadores e celulares (espécies de RG de aparelhos conectados) e nos backups das redes sociais. As conversas e imagens utilizadas nas chantagens podem ser resgatadas como provas de um possível crime. Quando a gente ia para o estupro à moda antiga [da lei], sempre tinha aquela discussão de que era a palavra de um contra a do outro. No “estupro virtual”, as testemunhas são as máquinas. Elas vão depor com aquilo que ficou registrado, frases, fotos, filmagens, etc.

Por essa razão, atualmente, discute-se uma conduta que, anos antes, era inimaginável, mas que o avanço tecnológico fez tornar-se possível: o estupro de maneira totalmente virtual, sem que haja qualquer tipo de contato físico entre autor e vítima.

Isso porque a evolução da sociedade passou a exigir, conforme os ditames da Constituição Federal de 1988, a formulação de uma nova concepção do objeto jurídico do crime de estupro – vez que a tutela da dignidade sexual decorre diretamente do Princípio da Dignidade Humana, que é considerado fundamento basilar da República Federativa do Brasil e se irradia sobre todo o sistema jurídico, possuindo inúmeros significados e incidências.A ideia de sexo na sociedade em que vivemos sofreu grande modificação. Entende-se hoje, que o sexo deixou de ser apenas uma relação composta por duas pessoas, passando a compreender, também, um ato realizado sozinho. Porém, quando se parte da ideia de que o sexo, ou quaisquer atos de libidinagem possam ser realizados por apenas uma pessoa, chega-se à conclusão de que o crime de estupro virtual se encaixa perfeitamente na conduta do artigo 213 do Código Penal.

Para corroborar essa tese, recordemos a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que julgou um caso do Estado do Mato Grosso (Recurso em Habeas Corpus – RHC 70976/MS) em que uma criança de dez anos de idade foi levada por mulheres (cafetinas) a um motel. No caso narrado acima, as mulheres tiraram as roupas da criança e a colocaram frente a um homem que lhes havia pago a quantia de R$ 400,00 (quatrocentos reais) para contemplar lascivamente a vítima (criança) sem roupas. O homem, que também participou do crime, fora denunciado por estupro de vulnerável, presente no artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, mas sua defesa, à época, alegou não ter havido contato físico entre a vítima e o autor e que, em razão disso, haveria a descaracterização do crime de estupro. Ocorre que, o caso chegou até o STJ através do RHC 70976/MS e o ministro relator Joel Ilan Paciornik negou provimento ao RHC por considerar desnecessário o contato físico entre a vítima e o autor do crime para que se configure estupro, pois “a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física”. Segue a ementa da decisão do ministro relator Joel Ilan Paciornik:

(RHC 70976/MS)EMENTA – HABEAS CORPUS – ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM CONTINUIDADE DELITIVA (POR DUAS VEZES) – ARTIGO 217-A, C/C O ARTIGO 71 (POR DUAS VEZES), AMBOS DO CÓDIGO PENAL – CONTEMPLAÇÃO DE CRIANÇA DESNUDA EM MOTEL – MEDIANTE PAGA – TRANSPORTE DA VÍTIMA EFETUADO POR CORRÉS APONTADAS COMO RESPONSÁVEIS PELA EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES – ATO LIBIDINOSO – TIPO PENAL QUE NÃO ENCERRA TODAS AS POSSIBILIDADES – INEXISTE EXIGÊNCIA DE CONTATO FÍSICO NO TIPO – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS) E DOUTRINA PÁTRIA TRATAM O CONCEITO DE FORMA ESTENDIDA – IMPOSSIBILIDADE DE CONCEITUAÇÃO ABSOLUTA PELA LEI – ALEGADA ATIPICIDADE – DISCUSSÃO AFETA AO MÉRITO – APONTADA INÉPCIA DA DENÚNCIA CONDUTA DO PACIENTE INDIVIDUALIZADA A CONTENTO – INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADA – AMPLA DEFESA GARANTIDA – 15 MÁCULA NÃO CARACTERIZADA – INTERESSE PÚBLICO SUBLEVA-SE SOBRE O PRIVADO QUANDO DO RECEBIMENTO DE DENÚNCIA – MÍDIA JUNTADA PELA DEFESA – MATÉRIA AFETA AO MÉRITO – VIA IMPRÓPRIA – ORDEM DENEGADA

I – A denúncia escoima -se nos ditames traçados no artigo 41, do Código de Processo Penal, cuidando da descrição cuidadosa das condutas típicas, cuja autoria é atribuída ao paciente e demais coautores. Peça vestibular que espraiou todos fatos com coesão, fundada em procedimento preteritamente concluído pelo Ministério Público, destinatário das investigações, eis que se trata do dominus litis. II – O tipo penal imputado ao paciente cuida do “ato libidinoso”, sem encerrar o conceito, razão pela qual cabe ao órgão acusatório demonstrar que, a determinação do agente para que a vítima permanecesse desnuda, a fim de que ele assim a contemplasse, tinha por objetivo satisfazer sua lascívia. Outrossim, o tipo penal não impõe que para caracterização do “ato libidinoso” faça-se necessário o contato físico entre o agente e vítima. III – Neste aspecto, a doutrina aponta que o tipo em comento abarca uma série de práticas voltadas à satisfação sexual do agente, tendo a Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, tem por conceitua violência sexual como sendo “(…) qualquer ato sexual, tentativas de obter um ato sexual, comentários ou insinuações sexuais não desejados, atos de tráfico ou dirigidos contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção, por qualquer pessoa, independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer contexto, porém não limitado à penetração da vulva ou ânus com o pênis, outra parte do corpo ou objeto(…)”. IV – Não há que se falar em trancamento de ação penal, eis que maiores incursões – dentre as quais a análise de mídia juntada pela defesa- levariam o julgador a analisar o mérito, o que é vedado na via estreita de mandamus, meio do qual só se pode valer-se quando verificada de pronto a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito, circunstâncias estas inexistentes nos autos. V – Ademais, a mera alegação de constrangimento ilegal, fundado somente no deflagrar da ação penal, não induz o trancamento de ação, sob pena de o Estado se ver impedido de investigar seus membros. VI – Ordem denegada. Com o parecer da PGJ. (fls. 250/251)

Portanto, veja: se o próprio STJ considerou, no caso supracitado, que configura ato libidinoso apenas o ato de contemplar o corpo da criança sem roupa em um quarto de motel, então o mesmo entendimento deve ser aplicado ao crime de estupro virtual. Oportuno realçar que o termo “estupro virtual” não se encontra explicitamente no texto penal. Entrementes, isso não impede que os atos cujo objetivo sejam depreciar a liberdade sexual de outrem através da internet, seja regulamentado na legislação penal. No caso, ele se enquadraria no artigo 213 do Código Penal: o ambiente virtual não permite que haja a “conjunção carnal”, mas acaba permitindo o ato libidinoso, ainda que não haja contato físico.

Em um estupro físico, em geral, é usada a força física bruta para dominar a vítima e realizar o ato sexual. No virtual, a violência também está presente, mas baseada no domínio psicológico: ameaças, chantagens, constrangimentos. O resultado, ainda assim, é um ato libidinoso sem consentimento — e isso é estupro. O ato de constranger alguém para que pratique, em frente a uma webcam, masturbação, sexo oral, posições ou toques íntimos, sob violência ou grave ameaça, pode, em tese, ser considerado crime de estupro – ainda que ocorrido no ambiente virtual. O crime é hediondo e seu autor não tem o benefício da fiança, graça, anistia ou indulto. A pena pode ser de 6 a 10 anos de reclusão e deverá ser cumprida inicialmente em regime fechado, devendo o processo correr em segredo de justiça.

É válido considerar, ainda, que nem sempre o crime é praticado por um estranho ou alguém com quem não se tenha, de fato, praticado um ato consentido, inclusive, de conjunção carnal. Não é incomum um ex-namorado ou ex-marido deter fotos e vídeos íntimos obtidos enquanto desfrutavam de um bom relacionamento e, desgostoso com o fim da relação, se valer dos materiais para a prática do chamado estupro virtual.

No entanto, muito embora essas ameaças possam afetar qualquer usuário da internet sem qualquer distinção, é preocupante o fato de que meninas e adolescentes também se tornam alvo deste tipo de crime. Apesar da previsão legal, não podemos olvidar que estamos falando de seres em condição peculiar de desenvolvimento que, apesar de extremamente habilidosas com as novas tecnologias, são desprovidas de discernimento acerca dos riscos a que muitas vezes ficam expostas no mundo virtual.Inúmeras são as notícias de casos de indivíduos que se valem dos meios de comunicação virtual para conquistar a confiança de meninas e adolescentes, com a finalidade de atraí-las a prática de atos libidinosos. As chantagens representam um passo adiante e os desdobramentos, os piores possíveis.

É evidente que a análise de todo o exposto deve ser marcada pela orientação, conversa franca e sem rodeios, vez que estamos falando de uma criança ou adolescente que possui, em suas mãos, um smartphone e acesso à internet, tanto no ambiente familiar quanto escolar. Caso contrário, a tarefa de educar estará sendo negligenciada.Com relação às escolas, além da prevenção, são recomendáveis iniciativas de conscientização com palestras e outras atividades educativas, com especial atenção para tempestivas providências, situação que pode ser decisiva para um futuro que está só começando.É preciso que a vítima conheça seus direitos, não tenha medo nem vergonha e que ela não se sinta culpada e sem saída por, um dia, ter confiado sua intimidade a alguém que não merecia. É muito importante que ela preserve todas as evidências (vídeos, áudios e mensagens contemplando as ameaças) e dirija-se à Delegacia da Mulher e/ou procure por um advogado especialista em Crimes Cibernéticos.

Esse tipo de crime é bastante recente, tendo poucos casos ainda julgados pelo Poder Judiciário. Isso pode ser explicado pelo fato de que muitas vítimas ainda têm medo de denunciar, acham que fatos ocorridos em ambiente virtual não é considerado crime, ou têm vergonha de expor o caso, fazendo com que esse crime ocorra frequentemente, sem qualquer punibilidade ou mesmo registro.

Por isso, os agressores em geral ainda ficam impunes. Ademais, a partir do momento em que a situação vem a público, dentro da família e do trabalho, a vítima acaba sofrendo diversos tipos de constrangimento. Alguém sempre faz as perguntas clichês: “Por que você se deixou fotografar, filmar? Por que você permitiu que isso chegasse a esse ponto, fora do controle, para só então denunciar?”. Esse tipo de questionamento acaba fazendo com que a vítima fique calada e não leve a denúncia adiante.

O impacto de um estupro pode ser devastador, pois se trata de uma experiência extremamente desmoralizadora e degradante. As vítimas de estupro têm tendência a apresentar (a curto e longo prazo) transtornos psiquiátricos, especialmente o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, transtornos fóbico-ansiosos, transtornos relacionados a abuso de substâncias psicoativas, transtornos de personalidade, transtornos dissociativos, transtornos de somatização e transtornos alimentares.

O crime de estupro virtual deixa marcas profundas na vítima e também na sociedade, vez que suas vítimas se sentem desprotegidas e acuadas frente a possibilidade de terem a sua liberdade sexual desrespeitada ou violentada e, ainda por cima, exposta, causando uma onda de insegurança social e jurídica.A condenação do primeiro caso de estupro virtual aconteceu em 2017, na capital piauiense, Teresina, resultando na prisão de um técnico de informática de 34 anos. O agressor infligia graves ameaças a sua ex-namorada, exigindo desta o envio de fotografias e vídeos realizando atos libidinosos, a exemplo, introduzindo objetos em sua vagina e/ou se masturbando. A vítima, de 32 anos, era universitária e havia sido namorada do agressor.

No caso ora norteado, como podemos perceber, embora não tenha ocorrido contato físico entre autor e vítima, estão presentes todas as elementares do crime de estupro: a vítima foi forçada a realizar atos libidinosos diversos da conjunção carnal em si mesma, mediante grave ameaça, para satisfazer a libido do agente criminoso, que, para tanto, se valeu do ambiente virtual – em outras palavras, ocorreu o denominado estupro virtual. Por mais que seja tímido, o reconhecimento desse tipo de crime não pode ser negligenciado, devendo, entretanto, ser punido como tal, pois a dignidade sexual do ser humano é uma só, ainda que figurando em dois mundos diferentes (o real e o virtual).A Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 5º, inciso XXXIX, combinado com o artigo 1º do Código Penal, estabelecem que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia sem cominação legal. Em razão disso, a falta de lei antecedente que estabeleça o crime cibernético e a pena atribuída, dificultam, ainda mais, a ação do Judiciário, porque inexiste respaldo legal para agir e fazer justiça. Ademais, recentemente, foi criada a Lei 13.718/18 que trouxe algumas modificações na seara dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, a chamada Lei de Importunação Sexual. Ocorre que, referida lei traz, em sua ementa: “Tipifica os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro; altera para pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a dignidade sexual; estabelece causas de aumento de pena para esses crimes; cria causa de aumento de pena referente ao estupro coletivo e corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).” (BRASIL, 2018). Ou seja, não tratou sobre o crime de estupro virtual, deixando, mais uma vez, uma lacuna em nosso ordenamento jurídico. E mais: percebe-se que a norma jurídica brasileira não acompanhou a evolução dos Crimes Cibernéticos para coibir crimes virtuais e o mundo virtual ainda é muito carente de leis específicas para punir tal ato, isto é: um vazio normativo, que não permite, ao Estado, punir os infratores da maneira correta.

O crime de estupro, na maioria das vezes não tem testemunhas e alguns não deixam vestígios. Nesses casos, a palavra da vítima deve ser considerada, desde que o crime tenha ocorrido sem a presença de testemunhas e que seu depoimento esteja em consonância com as demais provas que eventualmente foram produzidas.

A vítima geralmente é abordada por meio da utilização de violência e ameaça, o que dificulta sua defesa – ressalte-se que na maior parte dos casos, as vítimas são mulheres e os autores, homens, que utilizam de sua força para subjugá-las. Com relação à necessidade das declarações da vítima estarem relacionadas com as demais provas do processo, destaca-se que isso se deve ao fato de que vítima e acusado, como sujeitos da relação processual, sentem necessidade de darem suas versões sobre o fato ocorrido, logo, para que se tenha força, é necessária a relação com as demais provas já realizadas/colhidas.

Importante destacar, que em casos de Crimes Contra a Liberdade Sexual, a palavra da vítima, desde que dotada de coerência, clareza e firmeza, pode ser utilizada como fundamento para uma eventual condenação, tendo em vista que sua importância é considerada ao ponto de mudar a direção do processo.

Quando ocorre um crime, ou qualquer fato novo que seja, surgem comentários, várias versões, interpretações, culpabilização e julgamentos realizados pela sociedade e pessoas que alcançam tal informação.

Ao se tratar de um crime contra mulher, as pessoas começam a buscar motivos e razões que justifiquem a prática docrime, sempre havendo a justificativa de ciúmes ou mau comportamento da mulher (vítima) em relação ao homem, pacificando a conduta criminosa, invertendo os papéis do agressor e passando, o errado, a ser visto como certo e a conduta, ao invés de repudiada, torna-se compreensível, pois se trata de uma sociedade machista que sempre enaltece o homem e diminui a mulher.

Nos casos em que ocorrem vazamentos de fotos íntimas de mulheres, existe sempre o questionamento de por qual motivo a mulher se colocou nessa condição de gravar ou tirar fotos e a culpa de quem compartilhou sem o consentimento da mesma é abatida, passando despercebida e fazendo com que a responsabilidade de arcar com as consequências da exposição recaiam sempre sobre a vítima, que será alvo de julgamentos e sempre lembrada pelo feito.Não apenas nos casos de exposição da nudez ocorre essa perseguição contra mulheres.

A vida na internet requer muito cuidado para todo posicionamento que é colocado, assim como fotos e informações pessoais que são passadas inocentemente em uma postagem que busca o intuito de divertir ou só compartilhar o momento, pois é através dessas publicações que são realizados os crimes cibernéticos, como são encontrados atos de intolerância, difamação, calúnia e ameaças em publicações de muitas mulheres que são alvos de julgamentos da sociedade por compartilhar opiniões ou qualquer outro conteúdo midiático.

Qualquer pessoa que utilize as redes sociais está sujeita a esse tipo de ataque, principalmente mulheres que possuem um relevante número de seguidores, ou são formadoras de opiniões e, em sua maioria, apresentam conteúdos que discutem causas feministas.

Com esses episódios frequentes no ambiente virtual, a facilidade para cometer esses ataques agressivos e falta de impunidade para essas atitudes, trouxe o surgimento da criação e aprovação de um projeto de lei que puna ataques misóginos sofridos na internet. A professora Lola Aronovich e todos os episódios por ela suportados, serviram de inspiração para o Projeto de Lei que ficou conhecido como “Lei Lola”: um projeto criado pela Deputada Estadual Luizianne Lins do Ceará, o qual alterou a Lei nº 10.446/2002 para atualmente lei 13.642/18, buscando que crimes que propagam o ódio ou a misoginia, o repúdio e aversão às mulheres – apenas por serem mulheres -, praticados no ambiente virtual, sejam considerados crime e acrescentados ao rol de delitos a serem investigados pela Polícia Federal.

Para quem desconhece a história da professora Dolores Aronovich Aguero, ou Lola Aronovich, em sucintas linhas, é uma professora de Literatura e Língua Inglesa da Universidade Federal do Ceará (UFC), que há mais de dez anos criou um dos blogs de maior audiência nas redes sociais, que retrata, com comprometimento, temas feministas voltados para causas sociais, o blog Escreva Lola, Escreva.

Pelo menos desde 2011, essa mulher espetacular enfrenta o ódio de reacionários e misóginos, que discordando de suas opiniões ou não suportando as verdades ditas pela autora em seu site, tentaram incriminar Lola e ameaçá-la para impedir seu trabalho, chegando mesmo a criarem um site falso e acusá-la de realizar um aborto em uma aluna em sala de aula, entre outros acontecimentos falsos, já que proibição ao aborto é uma das principais questões de conservadores movidos por sentimentos de ódio.

Após muitas denúncias das ameaças recebidas e a não resolução de nenhum dos crimes perpetrados em seu desfavor ao longo dos anos, Lola apresentou uma queixa-crime com o apoio da OAB de seu Estado (Ceará), contra dois internautas que produziram vídeos atacando sua imagem.Criaram, também, um manifesto assinado por entidades do campo progressista, que resolveram se prontificar e oferecer apoio, como o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, a Associação Nacional pela Inclusão Digital (Anid) e pessoas que defendem a liberdade de expressão e discordaram dos fatos, oferecendo, assim, apoio e pedindo que a polícia tomasse providências.

O projeto de lei que pune ataques misóginos sofridos na internet, foi aprovado pelo Senado no dia 07/03/2018 e sancionado no dia 03/04/2018 pelo Ex-presidente da Republica Michel Temer, sendo um importante passo para que sejam contidos delitos como esses, porém deve existir a divulgação da lei, para que seja um crime conhecido por aqueles que ainda o cometem -, já que a lei, por si só, não impedirá que ocorram situações dessa natureza.

Assim sendo, é possível perceber que, mesmo de forma tímida, existe uma conscientização e reflexão dos atos perpetrados contra mulheres no ambiente virtual, pois se não houvesse um avanço, não seria possível a criação de leis e medidas para que nem tudo passe em branco.Note-se que mesmo com o machismo enraizado em nossa sociedade, surgem espaços para discutirmos mudanças contra esses tipos de condutas e posturas praticadas contra mulheres, pois, por mais que a sociedade brasileira se encontre em meio à um conservadorismo que coloca as pautas femininas em segundo plano, a partir do momento em que a mulher percebe que vive sob condições que a tornam vulnerável perante a violência social e sexual, haverá uma preocupação e busca por reconhecimento da Dignidade Humana.

Só conseguiremos reduzir os casos de estupro quando diminuirmos a “objetificação” sexual das mulheres, da ideia de que elas estão disponíveis e podem ser “tomadas” quando o homem desejar, mesmo que não queiram. Essa ideia se encontra tão enraizada na sociedade, que o fato acabou “normalizando”. Ainda que abominável, a concepção de que a mulher deve estar disponível e possa ser “consumida” pelos homens — dentro da chamada “cultura de estupro” – infelizmente, ainda se mostra viva e muito presente na postura e comportamento de muitos homens. E disso não depende apenas a aprovação de leis, mas sim, de um enfrentamento cultural e educacional contra a misoginia e o machismo.

KARINA BUENO TIMACHI é protetora de animais independentes, gateira, advogada, palestrante, escritora, idealizadora do projeto “Empodere-se”, Presidente Fundadora da AMU VIDA – Associação Nacional das Mulheres Vítimas de Violência Doméstica e Presidente Fundadora da ABRA FAMA – Associação Brasileira de Direito de Família, Sucessões e Cível.

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